14 de janeiro de 2008

Julinha, aquela porra.

Norma era uma velha muxiba e ranziza. Ninguém gostava dessa múmia. Quando a bruxa dava as caras era para arrumar confusão. Até o Celso Russomano já tinha ido apartar briga dela com a boazuda da Dona Solange no Aqui e Agora.

Há muito o povo já vinha preparando o enterro da Norma. Mas a cada primavera era mais uma coroa de flores que ia para o saco junto com nossas esperanças.

A molecada tentava contribuir. Na época de São João, não tinha uma semana que não estourava um rojão 12 tiros na garagem dela. Apesar da boa intenção, a Norma tinha sono profundo.

Aliás, já viu velho não ter sono profundo? Parece que estão treinando para morte.

Norma era sozinha, morava apenas com um gatinho meio boiola. Nunca aparecia visita por lá. Ninguém até aquele último verão.

Era um calorão danado e a rua estava melhor do nunca. Molecada bebendo água na mangueira da Dona Iraci. Seu Moacir vendendo Picolé Esquimó e dando de lambuja gelo seco para toda molecada. As irmãs do Pedrinho no Salão de Cabelereiro debaixo daquele negócio que parece que foi feito para sugar o cérebro.

De repente, dobrando a esquina surge uma Quantum vermelha. Invade nossa quadra de vôlei improvisada e quase rasga a rede, se não fosse o ato de coragem do Deco, como que um toureiro a domar aquele carrão. A molecada urra!

A Quantum sobe a rua e para bem enfrente a casa da Norma. Meu tio Décio que acompanhava o jogo pelo portão deixou escapar:

- É o camburão! A velha empacotou. Teresa, pode assar aquela leitoa!

Do camburão saí uma moça que tinha a idade da minhã mãe carregando pela mão uma menina de laço de fita amarela na cabeça e toca a campainha da casa da Norma.

A rua fica toda em Stop Motion.

Quando a velha saiu, o povo aguardou ansiosamente. Até as irmãs do Pedrinho de bob na cabeça foram para a porta do salão para ver o pau comer. Norma já ia saindo com um palavrão na boca, quando exclama:

- Julinha, minha netinha, como você tá linda!

A menina olhou para mim, que estava todo sujo de Chikabon e me deu um sorriso.

Meu tio, que continuava no portão vendo a cena deixou escapar:

- Julinha? Netinha? Que porra é essa!

Essa foi a última coisa que eu consegui ouvir. Aquela era a porra mais bonita que eu tinha visto na minha frente.

Meus caros leitores, chega uma hora que menina deixa de ser menina e vira moça. Aquele ser nojento deixa de ser tão nojento, que sua boca começa querer tocar a boca dela.

Sentir aquilo era até normal, afinal eu era um dos últimos da turma que ainda não havia dado beijo na boca. De língua. O Marquinhos já tinha beijado a Sandrinha com aquele monte de ferro na boca. O Zeca disse até que ficou com uma menina da rua de cima que tinha pegado no pinto dele!

Mas eu queria beijar a Julinha? Aquela porra?

Soube mais tarde, pela minha mãe na hora do jantar que a tal porra da Julinha era a única neta da velha Norma. Julinha tinha vindo passar as férias na casa da vó, enquanto os pais estivessem viajando.

Minha mãe sempre foi a melhor agência de notícias da rua.

No dia seguinte, eu precisava chamar atenção da Julinha. Tinha até deixado as figurinhas do Campeonato Brasileiro 97 de lado. Só conseguia pensar na Julinha e nas suas fitinhas amarelas.

Fiz de tudo o que podia naquele dia. Chutei bola no portão, soltei bomba, toquei a campainha e saí correndo, mas nada parecia dar certo. Não sabia mais o que fazer. Tava amargurado. Tava sofrendo dores de amor. Era horrível. Tava até com caganeira.

Mas um dia minha sorte mudou.

Minha mãe tinha mandado eu comprar pão. Essa era sempre uma ótima oportunidade para comprar uns três pacotinhos de figurinha do Campeonato Brasileiro. Talvez quem sabe eu até tirava a figurinha do Roberto Carlos, aquele lateral que jogava no União São João de Araras.

Fui felizão.

Comprei aquele pãozinho quentinho, que eu sempre tirava metade para ir comendo no caminho. Com a boca cheia de casca de pão vi caminhando em minha direção Julinha, com um vestidinho rosa, que dava até para ver as canelas. A múmia tava do lado.

Quando elas passaram, tentei ser cortês:

- Bom dia Dona Norma, bom dia Julinha.

Voou pedaço de pão na cara de todo mundo.

- Cacete, moleque mal-educado! Não sabe comer de boca fechada, não? Sua mãe não te dá educação não?

Fiquei sem-graça demais.

A bruxa da Norma deu um puxão na Julinha, que a menina até deixou cair um papel de carta perfumado do "Amar É" da sua bolsinha:

"Amar é Ajudá-lo a Lembrar ainda Mais de Você", com um desenho de um telefax, novidade para a época.

Passei dias remoendo aquela paixão. Já não saia mais de casa. Deixei de ser o goleiro oficial da rua. Já não roubava mais o gelo seco do Seu Moacir. Até o Master System já não jogava mais. Só olhava a cartinha do Amar É e pensava naquela porra.

Toda vez que pensava naquela menina, me borrava inteiro.

Decidi procurar meu vô Jorge, que dê mulher ele entendia. Afinal, mesmo depois que a minha vó morreu, a casa dele parecia uma lavanderia, cheio de calcinhas espalhadas pela casa.

Ele até que tentou me ajudar, mas o máximo que eu aprendi foi que toda mulher vestida de garota de torcida que entra com um jogador de basquete em um vestiário tem por fim algo nada pudico. Também aprendi que a Vera Fischer tinha mais pêlo que esfiha de rodoviária, nas palavras do meu avô.

Saí mais atordoado do que entrei. Afinal, a Julinha não era garota de torcida e eu nunca tinha comido uma esfiha na rodoviária.

Voltei para casa e tomei uma decisão. Fui para o quarto, tomei banho, coloquei minha cueca da sorte, passei gel no cabelo, roubei a Água de Cheiro do meu irmão, coloquei meu melhor traje a lá missa de domingo e parti para o ataque.

Sai de casa, destinado a devolver aquele pedaço de papel perfumado e ganhar pelo resgate um beijão.

Meus caros amigos e companheiros leitores que me acompanharam até este momento. Bravos guerreiros, que paciência que vocês têm. Nem eu aguentaria. Vocês devem estar querendo saber o final desta história, certo?

O final não foi nada romântico.

Quando eu estava perto da casa da Múmia, vi que a Quantum parada na porta. Mas desta vez era preta e tinha um adesivo preto atrás escrito Cemitério Boa Viagem.

Pois é, meu caros. A velha Norma resolveu empacotar justo no dia em que eu ia me declarar para a Julinha.

Dizem que a Bruxa escorregou tomando banho no chuveiro. Ninguém ouviu nada. Julinha estava brincando com o gatinho meio boiola. Só foram descobrir a velha Norma debaixo do chuveiro quando os pais da menina chegaram para buscá-la.

A rua toda ficou abismada. Por que a velha era nosso patrimônio. Nosso Raid Mata-Baratas, um mal necessário. Meu tio disse que estava até planejando fazer um busto em homenagem à Norma.

Mas e a Julinha?

Ah, dessa eu me lembro muito bem. Um beijo na missa do sétimo dia, no confessionário. Muito romântico, com uma vela azul de sete dias dando o toque meia-luz. Um beijo para nunca mais.

Um comentário:

Anônimo disse...

E eu me pergunto: Da onde o Danilo tirou essa história? rs
Ass. Amanda