4 de abril de 2008

Limpeza

Agacho com certa dificuldade para catar mais uma latinha. Tenho feito isso por um tempo que ainda não acredito ter passado tão rápido assim. Lembro-me ainda do dia em que decidi usar o resto de dignidade que ainda restava e passei a recolher essas latinhas, além de papelão e outras sucatas.

Hoje minhas costas doem. Dói também ter que empurrar uma carroça que carrega desde alumínio amassado até o desprezo dos carros que por mim passam e cospem suas fumaças cinzas.

Mesmo vestindo roupas rasgadas, dormindo em albergues e tomando uma sopa insossa na Praça da Sé, ainda tento sorrir. Claro, já não são os mesmos dentes brilhantes de outrora, mas procuro dar-me o luxo de buscar ser feliz.

A calma do meu espírito é saber que alguém me ama fielmente. Nas horas mais difíceis do dia e, principalmente da noite, quando me resta apenas um pedaço de papelão e uma barriga que teima em mostrar minha constante desgraça, ela ainda está lá. Chacoalha seu rabo e sorri, como se dissesse "Tenha paciência, pois ainda sairemos dessa".

Estou velho e cansado dessa luta constante para seguir vivo nessa sociedade de consumo. Já fui homem de terno, gravata e falar apressado. Homem de muitas verdades e poucas certezas.

Mas hoje, vendo esses carros cruzarem freneticamente essa avenida, pessoas agredindo umas as outras por meio metro de espaço, mães com seus vidros fumês que tentam ofuscar dos filhos a realidade de uma criança de mesma idade que se humilha no farol, vendo tudo isso, vejo que não fui eu que pirou. Eu apenas não quis subir nesse trem.

Absorto nessas brumas, um garoto me tocou e disse:
- Meu senhor, não fica triste, não! Você cata latinhas do chão, dessa gente sem educação, e as recicla para que voltem às mesas de quem te trata sem a menor afeição. Você pode até não ter um ganha pão, mas tem a minha mais profunda admiração.

Então, naquele momento, mesmo em maltrapilhos e com pouca higiene, senti-me o homem mais limpo do mundo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto!
bj, Amanda